Lino de Miranda publicou alguns textos em jornais da Póvoa de Varzim. São textos curiosos que revelam o olhar de um homem que viveu experiências curiosas aquém e além mar. Os textos falam por si...
Segue um texto retirado de uma coluna intitulda "Onde Canta o Sabiá...", que o autor manteve por um tempo no jornal A Voz da Póvoa
FRIAGEM
A propósito desta vaga de frio que nos assolou e que provocou o nosso espanto por vermos nevar onde não havia memória de que tal acontecesse, veio-me à lembrança o que um dia, com não menor espanto, presenciei no Amazonas: a friagem.
Foi por alturas do S. João, santo muito festejado no Brasil, com fogueiras, quase à nossa moda. Nessa altura do ano, que é Inverno no Amazonas (quer dizer que chove todos os dias algumas horas por dia, ao contrário do Verão, em que chove todos os dias mas nem sempre na cidade toda ou em todas as ruas do mesmo bairro), alguma viração dos ventos do Pacífico costuma empurrar certa massa de ar dos Andes sobre a Bacia Amazónica, e por uns quatro ou cinco dias a temperatura baixa para valores do nosso Verão minhoto: vinte e poucos graus de dia e cerca vinte de noite, se bem que haja registos históricos de dezoito e talvez dezassete - o que deve ter sido uma verdadeira calamidade pública.
Dizem que Deus dá o frio conforme a roupa. Mas os homens, podendo, arranjam a roupa conforme o frio. Ora num lugar como a cidade de Manaus, onde vivem alguns conterrâneos nossos, nunca imaginei que haveria de ver ninguém com frio. Pois se a temperatura na cidade, mesmo de noite, anda quase sempre acima dos trinta graus, como imaginar que alguém pudesse sentir frio? Mesmo com roupa, ou sem nenhuma. Para nós, habituados a climas frios, a dificuldade era arranjar água fresca e correntes de ar. E quando veio a tal friagem, em junho de 75, foi uma óptima surpresa. Deixámos de suar por aqueles quatro ou cinco dias, a água dos canos já não queimava, desaparecia da pele das crianças, como por encanto, a brotoeja, desejávamos, enfim, que durasse mais um dia sequer, já que a esperança não era tão louca que pudesse desejar um mês ou dois fora do caldo habitual.
Mas ao mesmo tempo que para nós era uma alegria, para os naturais da terra era suplício. Vinham para a rua embrulhados em tudo o que tivessem em casa, mantas, lençóis, toalhas, cortinas, pedaços de pano sem distinção, e batiam o dente como nós batemos aqui durante uma geada forte ou uma nortada de inverno. Morriam os peixes no rio sem oxigénio, que fugia das camadas altas da água, devido à mudança de temperatura. Amarelavam e até caíam algumas folhas das árvores. Fechavam-se portas e janelas... Só não haviam lareiras dentro das casas. O frio não era para eles conforme a roupa.
LINO DE MIRANDA
(A Voz da Póvoa, março/1983)
OBS. A grafia do texto é aquela usada em Portugal na época em que foi publicado o texto.
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